quarta-feira, 21 de maio de 2014

6. Comunicação problemática



O que vamos fazer com esta menina? disse a Quiqui, a galinha branca no dia seguinte, quando viu que a Célia estava ainda a dormir.
- É muito rara, mesmo, disse a Coco, a galinha preta. Não dorme de noite e depois não pode acordar.
- É uma nínia excepcional, disse com orgulho a Socoro, que tinha ouvido. Um bocadinho rara, talvez, pero mui buena, la berdá...
As outras duas não disseram nada mais.
- Filha, disse a Socoro, acuérdate, por fabor. É hora de acordar.
A Célia abriu os olhos.
- Ó, mãe, disse, sonhei com a lua...
A Socoro começou a afastar-se. A Célia seguiu-a.
- Sabias que a lua é um queijo? perguntou.
- Um quesso? Quem to disse?
- Disse-mo o Rodrigo, a rata.
- E donde encontraste tu esta rata, se puede saber?
- Veio aqui esta noite.
- Dios mio! Um inbassor!
- Não, não é um invasor, é um amigo!
- Donde está este Paulo? Paulo! Paulo!
- O que aconteceu? perguntou o cão da quinta, que acabava de entrar.
- Estás aqui para defender-nos, no? perguntou a Socoro.
- Claro que sim...
- Donde estabas, entonces, ontem anotse, que uma rata entrou, obviamente para roubar?
- Uma rata, disseste? perguntou o Paulo. Desculpa lá, mas eu estou aqui para vos proteger das raposas, não para caçar ratas. Se tivesse entrado alguma raposa podias reprimir-me. Mas, por causa de uma rata, não. Mesmo se fosse um ladrão...
- O Rodrigo não é ladrão, disse a Célia. Só procura comida para a sua família porque não tem.
- Boa excussa, disse a Socoro. Célia, querida, tienes que tener atención. No todos são amigos. As ratas são ladrones, bale?
- O Rodrigo não, disse outra vez a Célia. O Rodrigo é bom e sabe muitas coisas, e sabe que a lua é um grande queijo, uma coisa que ninguém de vocês sabia. Mas ele sabia-o!
- Esta tsica ba a matar-me, disse a Socoro e saíu.
- A tua mãe tem razão, disse-lhe o Paulo, o cão. Não deves ter relações com pessoas como aquele Rodrigo. Digo-to para te proteger.
- Não preciso de protecção, disse a Célia.
- Cuidado com esta língua, disse o Paulo, que ficou ofendido. Não podes falar assim. A final de contas não somos coetâneos...
- Coe...quê?
- Coetâneos, repetiu o Paulo. Quer dizer «da mesma idade».
- E porque não dizes isto e usas esta palavra difícil?
O Paulo não disse nada mais, somente suspirou. Depois, saíu da casa dos animais, a passo lento.
A Célia olhou para o posto da vaca. A Mulata estava a masticar, como sempre.
- Devias ser mais obediente, disse à Célia. A tua mãe quer o que é bom para ti. Se ela te diz que não deves ter relações com esta rata, será porque ela tem razão. As ratas vivem fora da lei.
- Não foi isto o que eu percebi, disse a Célia. Ele tem mulher e filhos e isto é legal, não?
- Aqueles que vivem fora da lei também têm famílias. Ter família não é prova de legalidade.
- Que sabes tu? disse a Célia. Para poderes falar sobre o Rodrigo, primeiro deves conhecê-lo.
- Não quero conhecê-lo, e não sejas mal-educada.
- O que digo é a verdade. E não podes ser mal-educado quando dizes a verdade.
- Quem te disse estas bobagens?
- Não são bobagens!
- Que menina tão atrevida! disse a Mulata, ofendida. Mas porque não és como os outros pintainhos?
- Não é mau ser diferente.
- Ser diferente não serve para nada. A uniformidade dá beleza ao mundo. Em fim, devias ser feliz, porque na nossa quinta há pessoas que nos cuidam, que nos dão de comer, que limpam a nossa casa...
- Sim, mas não o fazem porque são boas pessoas, fazem-no para ganhar de nós. Tu dás-lhes leite, as ovelhas dão-lhes lã e leite, as galinhas dão-lhes ouvos, como já vi...
- Isto não é nada mau. O mais importante é que na nossa quinta tudo é bom e nada mau acontece, a não ser que ratas ladrões entrem e roubem a comida...
- O Rodrigo não é ladrão! O que acontece é que há pessoas menos favorecidas e isto é uma injustiça.
- Não quero ouvir mais, disse a Mulata. Estas ideias revolucionárias são muito perigosas. O que é que queres, então? Que nós percamos o que temos, que percamos a nossa casa e os cuidos da dona Elvira e do Vitorino? Queres que nós também não tenhamos nada para comer? Queres que percamos o nosso futuro?
- Não, tudo o contrário. Digo que o Rodrigo também devia ter os cuidos da dona Elvira, que ele também devia ter para comer...
- Não sei quem te pôs estas ideias na cabeça, mas não sabes o que dizes...
- Sei, sim!
- Sai daqui, vai brincar com os outros pintainhos, já me deste dor de cabeça, disse a Mulata e voltou para o outro lado.
A Célia pensou que não podia comunicar com a Mulata. Voltou para as ovelhas.
- A Mulata tem razão, disse a Bea, que tinha ouvido tudo. As tuas ideias revolucionárias somente podem trazer tristeza na nossa quinta. Porque achas que devemos prejudicar o nosso futuro aqui?
- E qual é o nosso futuro aqui?
- Não percebeste que nesta quinta todo está bem organizado e vivemos todos felizes?
- Até quando?
- Até sempre, claro, interveio a Beti.
- E os animais aqui não morrem?
- Aqui não. Nunca vi eu um animal morto dentro desta quinta. Por isto é que te dizemos que deixes as coisas como são. Ou achas que nós somos estúpidos?
A Célia achou muito raro que ninguém moresse na quinta, mas não podia saber se isto era verdadeiramente verdade, já que era muito pequena e não tinha experiência da vida. Talvez os outros animais tivessem razão, então. Mas o Rodrigo seguiria ser seu amigo, pronto.

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